“Tivoli 62” : o fado inteiro, 1

Tivoli 62. Espectáculo de Homenagem a Filipe Pinto 29 de Novembro de 1962, Fernando Farinha, Lucília do Carmo, Alfredo Marceneiro, Filipe Pinto e Amália Rodrigues, gravado ao vivo no Teatro Tivoli por Hugo Ribeiro, pesquisa e coordenação da edição de Frederico Santiago, Edições Valentim de Carvalho, 0355-2, 2015.

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«É lindo o Fado Corrido / Que em Lisboa foi criado / Mas não pode ser esquecido / De Coimbra o velho fado». Noite: palavra, conceito e certa vida do outro lado do Sol. Meia-luz, sombras, sussurros («Meia-noite e uma guitarra / Meia vida por viver» [1]), a névoa que se evola dos cigarros e a que a luz esmaecida das velas confere uma densidade insuspeitada. «Lisboa sempre bairrista / Desta simples melodia / Fez o fado mais fadista / O Fado da Mouraria». O primeiro som dedilhado na guitarra é sempre, para as pessoas sentadas nas mesas ou em pé ao balcão, predispostos para a nocturna e sacro-profana liturgia do fado, um momento único: a noite chegou («essa noite que à noite me procura» [2]); a noite natural coincide com a noite desejada; a vida está alinhada com a morte e a morte com a vida, o abraço dos braços da maldição, porque o destino é outra coisa («Que destino ou maldição / Manda em nós meu coração» [3]). «Lisboa pôs com amor / A alma sentimental / No Menor que é o maior / Dos fados de Portugal». Os anúncios luminosos, de néon, clareiam também a cidade, são uma espécie de vitória festiva que guia quantos partilham a ilusão de vencer a noite. («Grande grande era a cidade / E ninguém me conhecia» [4]). O nome do teatro ganha à escuridão, Tivoli. «De Coimbra e de Lisboa / Suas canções afinal / São trovas que o povo entoa / E traduzem Portugal». Onde houver Portugueses, o fado, bem ou mal cantado, a todos une; é uma espécie de tragédia psíquica colectiva que agrega até quantos o não apreciam. É provável, então, no caso de quantos dele não gostam, que não seja o fado mas a noite; sucede que a noite é o fado, palavra antiga, tal como a noite é antiga.

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Alfredo Marceneiro, Filipe Pinto, Amália Rodrigues, Lucília do Carmo e Fernando Farinha na noite do espectáculo de homenagem a Filipe Pinto, 29 de Novembro de 1962. Fotografia da colecção do Museu do Fado, reproduzida a partir do booklet do disco Tivoli 62, 2015.

Tivoli 62 é um disco cheio de imperfeições; das imperfeições, dolorosas ou felizes, da vida ela própria, trespassada pelas imperfeições do «bailado» inconstante das paixões, dos afectos, das emoções, à mercê desses «balanços da sorte» que abrem o percurso incerto da vida. A vida, toda a vida, da primeira consciência à morte, é o que cantam todos os fadistas que estão neste disco. Todos eles cantam a vida que é a realidade de cada um, e todas as imperfeições, visíveis ou inconfessáveis, retratadas ou omissas, que vagueiam para além das circunstâncias na voz que podem ter. Nesta imperfeição onde se ouve a respiração dos fadistas, a sua troca de mimos, o ranger das cadeiras onde estão, no palco, sentados os guitarristas, os pigarros, as tosses, os catarros de tantos cigarros queimados, o sorriso e o aplauso do público que assiste, enfim a profunda e ensombrada emoção de Filipe Pinto; em toda a sua imperfeição, este é um disco perfeito, pois nele está o fado inteiro num tempo que passou e não volta mais, numa entoação e num português que se falava e não se fala mais. Pelo tempo que existe dentro deste disco, tão perfeito pela sua crua imperfeição, é preciso ter tempo para ouvir, ler e ver este disco. Isso não é consentâneo com o falso fulgor do imediato; é necessário ouvir de novo para nos encontrarmos cada vez mais perto da verdade que foi fixada pelas máquinas de gravação do som. O valor intrínseco do único que é possível, pelo disco, ouvir de novo. Sem tempo para a totalidade do registo contido no disco, como se se estivesse naquele teatro, sentado numa cadeira do antigo Tivoli, na expectativa do início do espectáculo, a sentir os distintos perfumes das senhoras e dos cavalheiros, não se alcança o tempo até onde o disco nos leva. Não há faixas neste disco mas o disco inteiro; é assim uma noite de fados. É esta a condição para aceder à autenticidade que este disco nos dá a ouvir e a efabular.

DSC02108É pois uma imperfeição natural, a deste disco: os aplausos por onde começa o disco indicam que alguém está no palco e vai cantar. Chegam ruídos do ranger das cadeiras onde estão sentados os guitarristas que se posicionam para tanger (fazer chorar, se eu estivesse nesse tempo) a guitarra e a viola, e aprontam os instrumentos musicais; Fontes Rocha dedilha, Júlio Gomes e Joel Pina aprestam-se na viola e na viola-baixo e Fernando Farinha saúda o público e apresenta o seu «programa»: «Senhoras e senhores, muito boa tarde. Vou iniciar o meu programa interpretando uma rapsódia de fados de Lisboa e Coimbra que se intitula, precisamente, Dois Fados». Neste tempo, um fadista contratado e com a importância de ter discos gravados, era um artista já profissionalizado, tinha «carteira de artista», pressupunha-se que soubesse falar; falar bem e com clara dicção era um indício de distinção. E Lucília do Carmo, depois, com a sua voz ondulante entre o cristal e o rasurado, traz esse ícone do fado que ainda hoje é Loucura. Depois de cantar Cabelo Branco, quando cessam os aplausos do público, ouvimos Alfredo Marceneiro murmurar, na sua voz de mimado por toda gente, para o guitarrista que o acompanha, «é o “Bailado” não é…?» ao que um dos músicos lhe confirma «o “Bailado” em ré…». Canta, no seu inconfundível estilo bem fraseado. E depois do Eterno Bailado há uma hesitação, que o Ti’ Alfredo logo resolve dizendo para Lucília do Carmo, «ó filha, canta tu agora…». O público corresponde, sorri, aquilo não é dali, de um teatro grande e chique como o Tivoli, aquilo é da noite dos retiros. «Os Olhos Cachopos, a pedido, vá…», insiste Marceneiro. E Lucília do Carmo, por fim, «senhoras e senhores, eu a pedido do Ti’Alfredo vou cantar os Olhos Garotos…». É preciso tempo (e sensibilidade, bem entendido), para chegar até ao tempo que perpassa destas intimidades fadistas. No palco do Tivoli, naquela noite de 29 de Novembro de 1962, estavam os maiores do fado e o calor dos aplausos reflecte isso. Este disco, onde está o fado inteiro, é um registo de vida fadista onde o fado aconteceu e continua, agora, na distância, a acontecer.

«Vai aparecer Filipe Pinto», diz, fulminante e com gravidade, o actor Rogério Paulo. O momento solene da festa, que é a chegada ao palco de Filipe Pinto, aproxima-se. Rogério Paulo não diz que «vai chegar», ou «vamos ter aqui» ou, ainda «vou chamar». Não: ele diz que vai «aparecer». Na primeira frase do texto que escreveu para o booklet, Frederico Santiago, o pesquisador e coordenador desta edição, enuncia, com precisão, o que significava este «aparecer»: «Em 1962 Filipe Pinto era um nome inseparável do Fado e o “mestre de cerimónias” do meio fadista – o seu talento diplomático tornava-o querido por todas as facções do Fado, e esse não era o mais pequeno dos seus feitos…» E também na última frase do seu texto, Frederico Santiago compreendeu isto: «“Vai aparecer Filipe Pinto!” – anuncia então o actor Rogério Paulo e antes de o fazer entrar lê a comovente carta do médico e amigo Amaro de Almeida. É comovido que Filipe Pinto aparece e nos canta “Desespero”, no seu “Fado Meia-Noite”.» Num português que já não se fala assim, prossegue Rogério Paulo: «E eu vou ler uma apresentação de Filipe Pinto que foi escrita pelo seu médico assistente, o doutor Amaro de Almeida. É uma coisa inusitada, fora do comum, é uma espécie de radiografia feita de um homem pelo seu médico». Que diferença grande faz este «e» antes do eu… quanto marca a humanidade daquela presença que colocava ao serviço da festa e do homenageado a sua voz de laivos declamantes. O testemunho do médico assistente de Filipe Pinto seria hoje, provavelmente, incompreendido, talvez até ridicularizado, porque o fado já não está tão intimamente ligado aos «balanços da sorte» da vida de quem o canta. Naquele tempo havia uma vedeta de excepção, hoje haverá menos do que um punhado de fadistas de excepção. «Lá ficas até aos últimos punhadinhos de terra e voltas sorumbático a exaltar as virtudes do finado e a recordar as mais belas passagens da sua vida na tua companhia. Vês, Filipe? Vês porque sou teu amigo? É porque és fadista com o vírus entranhado até à última célula do corpo. És um caleidoscópio de vício e de virtudes.»

E «aparece» Filipe Pinto. Comovido, resume aquilo que o fado, na maioria dos casos aclamados, hoje já não é: «… e como para o fado a garganta está em último lugar, portanto “vocelências” perdoem a garganta e oiçam o meu coração.» Não, isto já não existe; finge-se que sim, mas é mentira; enfim, concedamos que é raro…

DSC02107Desespero, cantado por Filipe Pinto, é o momento mais pungente da noite. Já não se canta assim, com esta ligação tão visceral à própria vida, na qual este homem, em boa hora relembrado, se consumia. Os dois versos finais, «Estou cansado de viver / Mas tenho medo da morte», Filipe Pinto canta-os com a sua inteireza de homem, na espessura de uma respiração gasta, que interiorizou já o adivinhável. O público sufoca com aplausos fortes a verdade que aquela voz esquisita exprimia. O público reconhece e aprecia a verdade do rigoroso.

E a verdade percorre todo este disco, do som ao objecto, do incontornável motivo da sua existência à sedução que exerce a presença, nele, de Amália Rodrigues. É por isso que este disco, contendo a imperfeição da vida ela própria, é mais verdade ainda pelo rigor que o estrutura.

 

Outrora, lembro-me bem

As ilusões refloriam

E quando meus lábios riam

Meus olhos riam também

 

Sem ver que os anos consomem

As ilusões lentamente

Desejei infantilmente

Crescer, ter barba e ser homem

 

Agora os risos são ais

Olho o mundo e desespero

Acho-o tristonho demais

Para quem é justo e sincero

 

Os dias parecem meses

Decorrem tristes a esmo

Confesso que muitas vezes

Tenho pena de mim mesmo

 

Não sei contudo entender

Estes balanços da sorte

Estou cansado de viver

Mas tenho medo da morte

Desespero (Orlando Nunes / Filipe Pinto), com Francisco Carvalhinho e Jorge Fontes (guitarras) e Martinho d’Assunção (viola), faixa 7.

 

[1]. Fado Meia-noite e uma guitarra (Álvaro Duarte Simões), Amália Rodrigues.

[2]. Fado Sombra (David Mourão-Ferreira / Alain Oulman), Amália Rodrigues.

[3]. Fado Maldição (Armando Vieira Pinto / Pedro Rodrigues), Amália Rodrigues.

[4]. Fado Fria Claridade (Pedro Homem de Melo / Joaquim Campos), Amália Rodrigues.

 

Fotografias: Jorge Muchagato, do disco Tivoli 62.