Amália: uma voz no coração da humanidade

Bastaria ouvi-la e nada mais, hoje, e nada mais que não se detivesse senão na sua voz; mas temos, nestas ocasiões, a fraqueza das palavras, porque o silêncio é imenso, como se fosse uma submersão lenta no mar. Enquanto isto acontecer, ela não morre tanto da sua morte natural, e as rosas vermelhas serão esperadas. Mas há sempre um silêncio intransponível, uma noite que se alonga no íntimo de nós. A noite propícia de onde a sua voz ascende e o nosso entendimento a procura em qualificações sem fim. Não sabemos o que é a eternidade, a noção que temos dela temos fica aquém; também não sabemos o que é a morte, a não ser que é uma falta, uma ausência, uma inexistência de retorno. A voz de Amália está nas nossas feridas – na eternidade, que é o desejo pungente de ficar, na morte, que é o mistério de todos os paradoxos que nos habitam e da alegria também. Amália encontrou-nos uma voz e aprendemos nela a escrever e a falar; uma simbiose perfeita entre duas almas – isso é a origem do mundo. Significa, assim, que para além do poder sublime, que quer dizer a espera do que possa acontecer, mais do que a beleza superlativa, a voz de Amália subtraiu-se às qualidades conhecidas do tempo e instaurou a sua eternidade. É preciso ter dentro de si todo o tempo, desde o princípio do entendimento, para que Amália exista tanto dentro da sua voz; quer dizer, em suma, nunca ser a mesma voz e, deste modo, prestar-se sempre à decifração. Essa seria a biografia ideal de Amália: escrever apenas a partir da sua voz e dos seus tempos. Mas isso não é possível, pois Amália era dotada de uma inteligência superior e possuía, de facto, uma filosofia de vida que deixou dita. Então, a voz e as suas palavras, repletas de conceitos, de intuições certíssimas, de uma dor falada que era um complemento ao seu canto. É preciso o amor à poesia para se amar Amália. Saber caminhar na escuridão e saber o sol, saber o gosto amargo da solidão; e quando tudo isto não se sabe, ela nos dá a conhecer estas propriedades da condição humana – foi o que ela sempre cantou, é o que ela sempre canta. É por isso que Amália é uma voz no coração da humanidade.

Fotografia: Augusto Cabrita, Lisboa, 1968

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